Um País eleitoralmente dividido ao meio, uma sociedade tensa e
cheia de problemas, um Congresso fragmentado e alianças que se
reproduzem sem eixo programático não são, seguramente, um cenário
risonho para nenhum governo.
Serão estes, porém, os termos com que Dilma Rousseff iniciará seu
segundo mandato e tentará vencer um conjunto complicado de desafios a
partir de janeiro de 2015, depois de ter sido reeleita com 52% dos
votos, 3 milhões a mais do que seu adversário Aécio Neves, do PSDB.
A economia parou de crescer, a inflação voltou a latejar, a corrupção
permanece viva e o caso Petrobrás tende a se converter numa bola de
fogo, a pressionar o sistema político e a fazer arder o entorno do
Palácio do Planalto. O PMDB não deverá facilitar as coisas para a
presidente, justamente ele, que fornece a coluna vertebral da base
aliada que em tese sustentará o novo governo. Há um direitismo querendo
emergir como movimento na sociedade e alguns setores de extrema-esquerda
não parecem dispostos a dar trégua ao PT, a quem tratam cada vez mais
como partido sistêmico.
Para complicar, o PT, ainda que vencedor, amargou uma redução de sua
bancada na Câmara dos Deputados (baixou de 88 para 70) e recolheu os
votos que lhe deram a vitória nos rincões mais pobres e tradicionais do
País, afastando-se dos centros urbanos e dos estados mais pujantes e
poderosos. Teve desempenho medíocre em São Paulo, seu berço histórico. E
não conseguiu seduzir o conjunto do eleitorado democrático e
progressista, pois desqualificou demais a campanha e não apresentou um
discurso suficientemente articulado para ir além de promessas vagas e da
ênfase na atenção aos mais pobres. Dilma foi eleita pela gratidão dos
grotões e pelo apoio crítico, condicionado, de parte do eleitorado
urbano.
Mas uma vitória eleitoral, especialmente se obtida na bacia das
almas, sempre concede ao vencedor um ânimo adicional. Dilma poderá
corrigir o curso de seu primeiro governo e cravar seu nome na história
política brasileira como personagem com voz e vontade próprias. Se
conseguir realizar, no segundo mandato, algumas das reformas que
anunciou genericamente durante a campanha (da economia, da política, da
moralidade pública, da educação e da saúde), passará o cargo para seu
sucessor reconciliada com o conjunto da sociedade, e não somente com
seus eleitores.
Para isso, terá de mostrar habilidade para cuidar da governabilidade,
ou seja, da montagem de uma operação política que amplie a legitimidade
e a representatividade da Presidência, dê sustentação ao governo e crie
condições para que ele coordene um novo ciclo democrático no país. O
desafio será ganhar mais capacidade para governar em condições de
democracia não sedimentada como cultura e numa sociedade complexa e
explosiva.
A governabilidade, no Brasil, sempre foi lida e vivida pela ótica das
coalizões parlamentares. Para obtê-las, nossos governantes têm pagado
alto preço, chegando, em alguns momentos, a vender a alma ao diabo. Foi
assim, por exemplo, no mensalão e no uso recente da Petrobras como moeda
de troca e ferramenta de financiamento político-eleitoral. Não se
tratou, em nenhum destes casos, de uma deliberada intenção corruptora
dos governos petistas, mas simplesmente do acatamento a uma chantagem
imposta pelo sistema político aos governantes. Com o passar do tempo,
tal chantagem passou a ser vista como “normal”, inevitável, enraizada
nas tradições nacionais. Governos progressistas, como foram os do PSDB e
os do PT nos últimos 20 anos, aceitaram recolher este pedágio como
exigência para que pudessem reformar o Estado e mudar a face da
sociedade.
Acontece que este sistema de chantagens e concessões bateu no teto. A
sociedade não o autoriza mais. Ainda que seu maior operador, o PMDB,
continue a ocupar posição de força no sistema, ele passou a ser visto
com mais desconfiança pela opinião pública. Pode ser que se mantenha na
condução da dinâmica congressual, mas tenderá a sofrer a concorrência do
PSDB e do PSB, partidos que cresceram de forma expressiva e que poderão
atuar de modo mais articulado.
O segundo governo Dilma também terá de se haver com a pulverização
partidária: terão assento no novo Congresso nada menos do que 28
partidos. Isto, por si só, exigirá muita flexibilidade e saliva das
lideranças peemedebistas e petistas, além de forçar a governo a ouvir
mais, a contemporizar e a ceder mais.
O desafio da governabilidade democrática estará assim se repondo, com
seus quatro vetores típicos. Um, o vetor da composição: com quem irá
caminhar o segundo governo Dilma? Continuará pendurado no PDMB ou
buscará ampliar a interlocução com os setores parlamentares mais
democráticos e à esquerda? Dois, o vetor da valorização institucional,
das instituições políticas e antes de tudo do próprio Congresso. Haverá
mesmo alguma reforma política e como será ela concebida e negociada?
Três, o vetor da capacidade política: terá a presidente disposição
pessoal de se dedicar à negociação política ampliada e à elaboração de
um discurso governamental que cauterize as feridas abertas pela disputa
eleitoral e recomponha o jogo político e social? Caso não tenha,
existirão em seu governo pessoas que poderão auxiliá-la nesta tarefa? E
quatro, a oposição ao governo saberá se conduzir com firmeza e
responsabilidade, atuando de forma propositiva e não somente como um veto player?
O futuro do segundo governo Dilma passará em boa medida pelas
respostas que forem dadas a estas questões. Nenhuma das reformas de que o
País necessita avançará sem que o Poder Executivo acerte o passo com o
Legislativo e trabalhe para facilitar, no Congresso Nacional, o
surgimento de uma dinâmica de cooperação entre os que são mais iguais e
que sirva para impulsionar a governabilidade democrática e neutralizar
os segmentos mais fisiológicos, que amarram e congestionam a vida
política.
O momento sugere dificuldades. Mas, por isto mesmo, pode ser propício para gestos de maior grandeza política.
Marco Aurélio Nogueira
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