Um busto discreto na Praça Osório, no centro de Curitiba, marca o local onde começou a caminhada final para a redemocratização do Brasil. No dia 12 de janeiro de 1984, no local onde hoje está o busto do mineiro Tancredo Neves, lideranças políticas de todo o país e cerca de 50 mil pessoas se reuniram para pedir a volta das eleições diretas para a Presidência da República. O ato foi a largada para a campanha que ficou conhecida como “Diretas Já”, movimento que foi vencido no Congresso, mas que resultou na eleição de Tancredo Neves para a Presidência há exatos 30 anos, em 15 de janeiro de 1985.
A redemocratização
Da rejeição da Emenda Dante de Oliveira à eleição de 89, os brasileiros esperaram seis anos para voltar a escolher o presidente:
2 de março de 1983 - O deputado federal Dante de Oliveira (PMDB-MT) apresenta uma proposta de emenda constitucional para reinstaurar as eleições direitas para a Presidência da República. A proposta fica conhecida como Emenda Dante de Oliveira.
12 de janeiro de 1984 - Comício na Boca Maldita, em Curitiba, marca o início da campanha pelas eleições diretas. Cerca de 50 mil pessoas participam.
25 de Janeiro de 1984 - Comício das Diretas, na Praça da Sé, em São Paulo, reúne 300 mil pessoas.
16 de fevereiro de 1984 - Rio tem passeata pela eleição direta.
24 de fevereiro de 1084 - Em Belo Horizonte, cerca de 400 mil pessoas pedem eleições diretas.
21 de março - Nova passeata no Rio reúne 200 mil pessoas.
10 de abril de 1984 - Comício da Candelária, no Rio, reúne um milhão de pessoas.
16 de abril de 1984 - Passeata em São Paulo reúne cerca de 1,5 milhão de pessoas. É a maior manifestação da história do Brasil.
25 de abril de 1984 - A Câmara rejeita a emenda Dante de Oliveira. Foram 298 votos a favor (eram necessários 320), 65 contrários e 3 abstenções; 112 deputados não compareceram. O PMDB começa a articular a candidatura de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral.
3 de julho de 1984 - Dissidentes do PDS (o descendente da Arena, partido de sustentação da ditadura militar) criam a Frente Liberal.
7 de agosto de 1984 - A aliança entre a Frente Liberal e o PMDB é formalizada. José Sarney é escolhido como vice de Tancredo.
11 de agosto de 1984 - Paulo Maluf é escolhido como candidato do PDS à Presidência. Aumenta o número de dissidentes.
12 de agosto de 1984 - O PMDB aprova a chapa com Tancredo Neves e José Sarney.
15 de janeiro de 1985 - O Colégio Eleitoral elege Tancredo Neves presidente. Foram 480 votos para Tancredo, 180 para Maluf e 26 abstenções.
14 de março de 1985 - Na véspera da posse, Tancredo Neves é internado em Brasília.
15 de março de 1985 - José Sarney assume a Presidência.
21 de abril de 1985 - Tancredo Neves morre. A causa da morte foi uma diverticulite.
28 de junho de 1985 - Sarney manda ao Congresso uma mensagem propondo a convocação de uma Constituinte.
5 de outubro de 1988 - A Constituição é promulgada.
15 de novembro de 1989 - Os brasileiros voltam a votar para presidente após 29 anos.
17 de dezembro de 1989 - No segundo turno das eleições, Fernando Collor de Mello (PRN) derrota Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e é eleito presidente.
Infidelidade governista foi essencial para a vitória de Tancredo
Chovia em Brasília às 12h25 do dia 15 de janeiro de 1985, quando foi anunciada a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. Do lado de fora do Congresso, populares comemoraram sob uma bandeira nacional de 250 metros quadrados. Outros escalaram a cúpula do Congresso. Era a primeira festa da Nova República, termo cunhado por Tancredo em seu discurso de vitória.
Em uma sessão com três horas e meia de duração, Tancredo teve 480 votos, contra 180 de Maluf (166 deputados do PDS votaram na oposição).
Os peemedebistas apostaram na infidelidade partidária do PDS para romper a barreira do colegiado, composto pelos membros do Congresso e por delegados escolhidos pelas Assembleias Legislativas. Tancredo insistia na tese da não validade da fidelidade partidária, pois deixar os 686 membros livres era a brecha para a vitória. Em novembro de 1984, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) havia decidido que parlamentares e delegados não eram obrigados a obedecer as diretrizes partidárias. O PT, que tinha apenas quatro anos de existência, fechou posição contrária à eleição. Dos oito parlamentares do partido, três se rebelaram e acabaram expulsos – Ayrton Soares, Bete Mendes e José Eudes votaram em Tancredo. “Queríamos eleições diretas”, lembra o advogado e ex-deputado petista Edésio Passos. “Não que o PT fosse contrário à candidatura do Tancredo Neves, mas foi uma posição no sentido das eleições diretas.”
José Marcos Lopes, com agências
Apesar de definida pelo Colégio Eleitoral, a eleição que colocou fim a duas décadas de governos militares começou a ser decidida nas ruas. Durante três meses, de janeiro a abril de 1984, milhões pediram nas ruas para o Congresso aprovar a emenda que reinstituía as eleições diretas para presidente – a última havia sido em 1960, quatro anos antes do golpe militar. A emenda recebeu o nome de seu autor, o então deputado Dante Oliveira (PMDB-MT). No dia 16 de abril de 1984, em São Paulo, no maior ato público da história do país, cerca de 1,5 milhão de pessoas pediram a volta das eleições.
A emenda foi rejeitada pelo Congresso Nacional em 25 de abril, mas o estrago nas bases da ditadura já estava feito. O golpe final veio com um racha no PDS, partido de sustentação do regime militar (a antiga Arena, rebatizada após a reestruturação dos partidos políticos, em 1979). O então presidente do partido, senador José Sarney, propôs a realização de uma convenção para definir quem seria o candidato à Presidência. A tese foi rejeitada pelo grupo ligado ao deputado Paulo Maluf, ex-prefeito biônico de São Paulo.
Sarney entregou a presidência do PDS e governistas de peso, como o pernambucano Marco Maciel e o catarinense Jorge Bornhausen, acompanharam o senador na criação da Frente Liberal (que depois viria a ser o PFL). A oficialização da candidatura de Maluf à Presidência deixou outros governistas descontentes – eram os votos de que a oposição precisava, no Colégio Eleitoral, para vencer a eleição. Sarney foi então oficializado como candidato a vice na chapa encabeçada por Tancredo Neves – por ser um político de tradição conservadora, o mineiro era mais “palatável” aos militares que o principal líder da oposição, o deputado do PMDB Ulysses Guimarães.
Vitória das ruas
“A vitória do Tancredo Neves foi construída nas ruas, na campanha das Diretas”, diz o senador paranaense Alvaro Dias (PSDB). Eleito para o Senado em 1982 pelo PMDB, Alvaro foi um dos articuladores do comício da Boca Maldita. O tucano avalia que o racha no PDS, que possibilitou a vitória de Tancredo, também foi motivado pela pressão popular. “Sem o racha, [a vitória] seria impossível, porque a oposição era minoritária. E a motivação para a dissidência também veio das ruas”, avalia o tucano.
A historiadora Dulce Pandolfi, do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (FGV), acrescenta que o desgaste da ditadura também ajudou no processo. “O Tancredo foi escolhido por ser mais conciliador. Mas acho que ali não foi o fato de ser ou não o Tancredo. O regime estava completamente desgastado”, afirma. “Foi mais o interessante o Maluf ser candidato do PDS do que o Tancredo do PMDB. E os movimentos sociais tiveram grande importância; a ditadura caiu por causa da sociedade. O Colégio Eleitoral foi um passo nesse processo que vinha crescendo com a Lei da Anistia, as greves do ABC Paulista e o movimento pelas eleições diretas.”
Suborno e medo de retrocesso assombrarama votação
Os dias que antecederam a eleição no Colégio Eleitoral foram tensos. Entre políticos da situação e da oposição, havia o receio de que os militares pudessem interferir no resultado da eleição e prolongar ainda mais o regime, que já durava 21 anos.
Alvaro Dias, que já era senador na época, lembra que havia boatos sobre a compra de votos de parlamentares. “Havia um processo de suborno de parlamentares, que estavam sendo cooptados para votarem no [Paulo] Maluf. A pressão das ruas impediu esse movimento.”
O senador diz que houve uma decepção quando Tancredo morreu e José Sarney (que antes era presidente do PDS) assumiu. “Houve um grande debate sobre quem deveria assumir: o Sarney ou o Ulysses Guimarães. O que facilitou a posse do Sarney foi o desejo de democratização. Havia um clima favorável à redemocratização, mesmo entre os militares.”
A historiadora Dulce Pandolfi lembra que a oposição chegou a debater se participaria do processo após a rejeição da emenda Dante de Oliveira. “Tinha-se muita cautela, o país estava saindo do regime militar e a transição estava inconclusa”, afirma. “Teve um debate grande sobre se [a oposição] continuaria a campanha, se deveria apostar no Colégio Eleitoral. Em 1974, com a eleição do [Ernesto] Geisel, a oposição sabia que ia perder, mas o Ulysses [Guimarães] saiu denunciando o regime pelo Brasil. Mas em 1984 tinha chances reais.”
O ex-deputado Euclides Scalco lembra dos debates internos no PMDB. “Os chamados autênticos não queriam a votação pelo Colégio Eleitoral. Mas o importante era retomar o processo democrático, e foi o que aconteceu. Se não fosse isso, não teria havido a Constituinte“, avalia.
Eleito presidente, Tancredo Neves não chegou a assumir o cargo. No dia 14 de março, véspera da posse, o peemedebista foi internado no Hospital de Base, em Brasília. José Sarney assumiu a Presidência em seu lugar. Tancredo morreu em 21 de abril de 1985, vítima de uma diverticulite, sem vestir a faixa presidencial que ganhara indiretamente da população, por meio do Colégio Eleitoral.
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Comício pelas diretas na Boca Maldita, em Curitiba Rubens Vandresen/ Gazeta do Povo
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